sábado, 5 de novembro de 2016

Devir social: de pares cuidam dos pares ao tribunal de júri

Bem vindos a mais um artigo do Devir Social. Todos que acompanham o blog já têm uma base de que o principal objetivo do pensamento desenvolvido por aqui é buscar ferramentas que combatam a “terceirização da responsabilidade”, e uma das formas que acreditamos para efetuar este combate é através do desenvolvimento do comportamento da fiscalização por parte da sociedade. Também, em outras postagens, chegamos à conclusão que não existe lei capaz de cuidar dos seres humanos: apenas humanos cuidam de humanos, sendo as leis objetos impessoais invocados quando nenhuma outra forma de negociação entre aqueles que se cuidam seja alcançada. Portanto, percebam que existe uma enorme área de negociação entre as relações que cidadãos estabelecem na sociedade e que a lei não tem a menor noção que acontece: isto sempre será assim, afinal, o tempo de resposta de uma lei sempre será inferior ao fato acontecido.

Desta forma, é preciso introduzir a noção de que seres humanos lidam com seres humanos. Mas este pensamento começa a se tornar complexo quanto percebemos que, por motivos mecânicos, alguns seres humanos, que são resultantes de um determinado processo histórico, sequer terão contato direto com seres humanos submetidos a processos históricos diferentes dele. Sendo assim, a afirmação “humanos cuidam de humanos” começa a se tornar frágil e mesmo utópica, pois nem todo humano poderá cuidar de todo humano. Para resolver este problema, adicionamos a definição de “paridade”, de modo que agrupamos pessoas com processos históricos semelhantes ou iguais em um só grupo, que chamaremos de paridade. Através disto, todas as pessoas que pertençam a este grupo são semelhantes e podem cuidar uma das outras. Em outras palavras: elas têm condições semelhantes de modo a possibilitar o diálogo e negociação entre as partes.

Percebam que através deste conceito, o de “pares cuidam dos pares”, a frase “humanos cuidam de humanos”, essencialmente utópica na prática, se torna algo mais factível. Ainda mais, quando adicionamos à camada cultural a esta analise percebemos ainda mais a importância disto ser desta forma. Afinal, pessoas de diferentes culturas têm objetivos e modos de cuidar diferentes, embora nenhum destes necessariamente firam a constituição federal. A principal importância deste conceito está na seguinte máxima advinda da teoria dos três poderes: nenhum agente social deve agir sem ter paridade sob o risco dele se descontrolar ao ponto de se tornar um agente autoritário. Ora, se um agente detém o poder, ele irá explorar este poder até encontrar os limites dele para então dar inicio ao seu crescimento. Se nenhum agente consegue fazer paridade a este poder, eles se tornam escravos sem vontade própria. Ter poder, afinal, é fazer sua vontade ser materializada e com isto encontrar a satisfação. Neste cenário, haverá o agente autoritário satisfeito e os agentes escravos insatisfeitos, mas dominados pela falta de poder.

No cenário desenvolvido acima percebamos uma características importante do sistema de paridade: é a negociação entre pares heterogêneos. Isto porque a paridade pode ser tanto homogênea, como é exemplo de um cidadão lidando com outro cidadão com características econômicas, culturais e políticas semelhantes, ou heterogênea, como é cidadão que lida com o governo. Com isto já percebemos uma relação de paridade fundamental para a construção de uma sociedade nos moldes que agora conhecemos: todo cidadão é par do seu governo. Isto porque todo cidadão tem direito aos serviços de continuidade do estado, pois o estado de direito é único e para todos. Desta forma, é preciso que o cidadão cuide do seu governo para que o governo não se torne autoritário, afinal, o governo em si é um agente social. O governo também precisa cuidar da sociedade, para que nenhum grupo específico de pessoas consiga crescer ao ponto de se tornar autoritário.

O principal interesse do Devir Social é que as relações de cuidado e negociação sejam feitas de maneira livre, e se isto não for possível, que seja feito através da licitude, ou seja, acompanhada do devido processo legal. Sem isto, a violência que deveria ser suficientemente grave no campo no campo da lei evolui a ponto de alcançar o físico, se materializando em criminalidade e mesmo em guerra. Também, é preciso verificar que todo ser humano deve ser respeitado diante a lei, isto por si só já é o suficiente para impedir casos de discriminação de paridades sociais. Esta discriminação acontece de um modo ou outro, independente de ser rotulada ou não. Contudo, é preciso que as paridades pensem em como desenvolver leis e comportamentos para cuidar de todos, inclusive dos seus pares. Se uma determinada classe social, detentora do poder econômico, por exemplo, não deseja dar espaço para outra crescer economicamente, é direito desta que tem vontade de crescer lutar por isso. Se não uma luta por meio dos agentes já detentores dos recursos econômicos, afinal estes são livres e não necessariamente são pares do grupo em questão, por meio do governo, que é par de todos.

Existem mais duas características importantes do sistema de paridade: ele é volátil e comporta a multiplicidade de pares. Ser volátil significa que uma pessoa que pertence a uma paridade pode, através de transformações sociais, pertencer a outra paridade. Afinal, viver é um constante processo de transformação. Alguns propositais, outros não. E sobre ser múltipla, essa característica é facilmente perceptível quando assumimos que o par de todo cidadão é o governo, mas que este mesmo cidadão pertence a uma cultura, economia e política específica, tendo paridade com outras pessoas de acordo com suas necessidades e vontade de atuação. Estas duas características são demais importantes, pois permitem que a diferença e a igualdade convivam em harmonia e em resposta aos elementos voláteis e constantes de cada configuração regional. Cada indivíduo será responsável por cuidar dos seus pares, e isto será feito de modo consciente, não através sistematizações políticas e educacionais ocultas, sem o processo lícito de modo a beneficiar um específico de pessoas sem que o grupo prejudicado seja advertido para que possa reagir. Se não for possível a negociação aberta, que seja possível a negociação lícita.

O sistema de paridade é, além de um dispositivo político-jurídico, um constante alerta a toda a população sobre a responsabilidade de cuidar do próximo e também de si mesmo. Entramos agora em um novo aspecto sobre o sistema de paridade: seu caráter jurídico e utilização no sistema jurídico. O direito já conhece, pelo menos em parte, algumas das propriedades de um tribunal de júri, que é invocado em crimes diretamente ligados com o viver e a violência humana. Ora, percebamos, através desta utilização, embora mal aproveitada segundo a percepção do Devir, que o direito já entende que quem acusa, defende, julga, sentencia e recorre são pessoas. Não existe na lei ou em nenhum outro dispositivo criado pela humanidade a característica de ser capaz de comportar a evolução e a dinâmica do viver humano. Portanto, é essencialmente necessário que humanos averiguem e julguem outros humanos. Também é essencial que isto se faça nos termos da lei, para evitar que a construção social feita em torno dela não seja desvirtuada, corrompida, aparelhada por interesses que não os da continuidade e etc.

“A lei, como já foi dito antes, se torna um objeto de impessoalidade. É a forma que um pensamento ou um comportamento de uma pessoa possa ser reproduzido e utilizado no meio de pessoas que sequer a conhecem pessoalmente. E o objetivo das pessoas que recorrem à utilização da lei como forma de tratamento entre seus pares é utilizar algum instrumento que tem credibilidade ou respeito por ambas as partes para resolver um conflito que elas mesmas não conseguem resolver através da sua liberdade de negociação. Desta forma, é sempre interessante que quem faça as leis observe a linguagem que será utilizada, e quando determinado público não entender tal linguagem, que se utilize do governo como agente confiável e responsável pela continuação como tradutor ou que se disponibilize os meios necessários para que os agentes do conflito possam obter a experiência necessária para ser capaz de compreender os termos ali descritos.”

Ora, colocar tamanha responsabilidade e poder de julgamento na mão só de um juiz é arriscado e também uma concentração de poder. Este juiz pode ser poderoso demais para não ligar e não querer perder sua energia analisando tal caso, como também pode ser fraco demais a ponto de sentir ameaçado por aquele que ele irá condenar de acordo com seu julgamento. Portanto, o tribunal do júri se torna um elemento necessário e essencial para qualquer crime: os pares terão a vontade necessária para analisar os crimes de modo satisfatório como também terão a defesa necessária para se proteger, caso haja algum tipo de retaliação. O tribunal do Júri, na opinião do Devir, é pouco desenvolvido judicialmente, sendo apenas utilizado para casos hediondos ou em casos especiais e específicos. A pergunta que o Devir agora pretende responder é: como fazer um melhor uso do sistema de paridade?

“Os pares cuidam dos pares” se torna, neste caso, “os pares julgam os pares”. Desta forma, o trabalho do judiciário deixará de ser julgar e passará a ser organizar e aplicar toda a estrutura de paridade social no tribunal de forma justiça e mediar o julgamento para que ele ocorra conforme a lei. A começar pela análise do caráter do crime: a quais paridades este crime afeta? Se for a apenas uma, que necessariamente é a paridade que o sujeito do crime pertence, será montado um tribunal homogêneo, apenas preenchido com seus pares. Neste caso, é fácil pensar que isto seria injusto, já que aquelas pessoas são pares a ele e, portanto, irão enviesar seu julgamento por este motivo. Mas isto não se sustenta, tanto porque a própria paridade está interessada no bom-funcionamento das características que a definem, de modo que um crime a isso seria um crime contra seus próprios interesses, como também porque o tribunal é montado de forma justa, e isto inclui o devido distanciamento do acusado pelo crime.

Caso o crime atinja mais paridades, a do criminoso e outra, por exemplo, deverá haver um tribunal de júri misto. Este tribunal precisa ser justo, de modo que todas as paridades ali presentes sejam, também, pares entre si. Por exemplo, em uma batalha clássica de trabalhador contra empresário, um tribunal de júri aceitável implicaria em mais trabalhadores que empresários quantitativamente, já que esta é a realidade da sociedade e também os empresários costumam ser economicamente mais poderosos que os trabalhadores, e o aumento do número de trabalhadores implica em uma maior dificuldade em ameaças ou corrupção a quem dará seu voto. A intenção disto é distribuir a responsabilidade do voto de modo a cada um ter o interesse em votar de acordo com a consciência e também não ter medo de possíveis represarias. Contudo, como elas são pares entre si, o peso da decisão das duas é igual, de modo que a soma de todos da classe de trabalhador dá 50% do veredito, e a soma da classe do operário também dá 50%. Este princípio pode ser induzido para tanto quanto for o número de paridades envolvidas no crime.

Outra característica interessante deste tipo de formação do júri é a possibilidade de maior análise por meio do legislativo. Uma decisão polarizada, por exemplo, aonde haja uma divergência muito grande entre as paridades do júri demonstra um espaço que merece a atenção dos legisladores, sendo este um indicativo muito grande de conflito entre as classes. Diferente, entretanto, de uma decisão também acirrada, mas de forma distribuída entre os júris. Neste caso, é possível interpretar que, ou o caso é realmente complicado para julgar, ou alguma etapa do processo poderia ser aprimorada.  Também, a própria decisão do tribunal do júri irá ter repercussão nas paridades. Afinal, não foi uma pessoa alheia ao cotidiano deles que tomou a decisão, mas sim uma pessoa que é semelhante por qualquer processo de formação ou atuação que seja. Esta repercussão será de primordial importância para trazer o cidadão a cuidar da democracia, tanto para entender a importância da lei como também para se sentir parte do processo judiciário e ético. Afinal, o julgamento, por meio do júri, se torna também um instrumento conscientização e responsabilidade democrática.

Existem algumas características do tribunal do júri que são importantes serem listadas, para que percebamos o quão poderoso este dispositivo é para o combate da terceirização da responsabilidade. Algumas propriedades já foram ditas acima, mas vou repeti-las. Segue:

- Regulagem e distribuição do poder de violência do réu, juiz, júri e acusador: de modo que as chances que algum destes faça um julgamento por meio de intimidação ou corrupção sejam diluídas a ponto de se tornarem desprezíveis.
- Autorreferenciação de julgamento: as chances de empatia com o próximo aumenta de acordo com o quão próximo ele for de você. Desta forma, o júri por paridade coloca o julgador numa posição direta de ser ele quem poderá estar naquele lugar um dia. Isto implica uma maior chance dele valorizar os princípios morais desenvolvidos por ele e seus pares de acordo com sua atuação, o que também fará o julgamento ser mais justo.
- Maior eficiência da moral: como escrito em um dos artigos do Devir, moral é o comportamento médio de um indivíduo que ele acredita que funciona. Quando exposto a casos de crime, se o crime não for julgado de acordo com a moral e a justiça, é possível que aquela pessoa esteja colaborando para a deterioração do próprio ambiente que ela convive com seus pares.  Isto é algo que vai da própria consciência dela, mas é boa a chance da maior parte do público se preocupe com seu cotidiano e deseje fazer um julgamento através da sua moral.
- Maior aproximação das paridades com o sistema político: além de jurídico, legislativo. Entender como funcionam as leis e ver que não é algo que um cidadão não possa interver e cobrar.  Desta forma, haverá um aumento da credibilidade, senso de importância e experiência da população em geral, já que também haverá um grande aumento de participações do júri, com relação às leis e aos poderes do governo. Ainda, o legislativo terá mais informações para desenvolver e aprimorar as leis, tornando todo o processo mais eficiente e satisfatório para a população.
- O julgamento do júri é soberano: de forma que o que for resolvido no tribunal, não possa ser recorrido. Isto irá dar uma enorme celeridade aos processos judiciais, já que a utilização da tática da inserção de uma enorme quantidade de recursos por parte da defesa será inviabilizada ou enfraquecida. Mesmo que um processo envolvendo júri demore mais pra ser organizado e em tempo de duração, espera-se que a decisão cause mais impacto social e seja definitiva, o que de certo irá ser um benefício quando comparada à farra dos recursos que acontece atualmente.
- O tribunal do júri deverá ser lícito: isto significa que deve haver um processo legal que forme o tribunal de modo à prevenir casos que beneficiem especificamente algum envolvido no julgamento.  De modo que, por exemplo: a lista de elegíveis ao júri deva ser estar feita antes do crime; desta lista haverá uma escolha por meio de algum sistema aleatório; as pessoas devem saber que júri ela irá julgá-la caso cometa um crime de determinada ordem; a proporção do júri deve ser adequadamente ajustada; entre outros.

Com o tribunal do Júri, o Devir Social espera que a distribuição de responsabilidade do sistema judiciário seja dividida para a população, sendo assim mais uma porta para que a população assuma a responsabilidade e a experiência do viver social para si. Além disto, a reforma do sistema jurídico é algo de fundamental importância para a reestruturação social, pois em sua situação atual, a população se sente desamparada e não tem nenhuma credibilidade por um dos três importantes poderes reguladores do estado.  Já que os três poderes serem conectados e complementares, é possível supor que a melhoria da participação no jurídico irá também fazê-la compreender a importância de participar dos demais, sem contar que o próprio Devir contempla soluções que pretende impactá-los. Com isto, finalizo este artigo. Um abraço a todos e até a próxima.

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