sábado, 16 de junho de 2018

Devir Social e a relação entre estado e mercado

Muito se fala acerca da capacidade do mercado de calibrar as relações sociais que atuam em uma sociedade. Ainda, defendem que o estado deve ser mínimo, de modo que todas as relações sejam, de fato, resolvidas através da lei da oferta e procura. Assim, espera-se que a dinâmica entre os agentes seja inteiramente determinada pela própria capacidade do agente desenvolver relações e cumprir os acordos estabelecidos, sendo papel do estado somente a manutenção destes acordos e garantir as necessidades mínimas do funcionamento de uma sociedade. O Devir Social, no entanto, se opõe a esta visão, já que ele defende que a resposta para os problemas que acontecem atualmente é o avanço nos métodos democráticos. Porém, o texto de hoje buscará trazer reflexões sobre alguns problemas trazidos por esta visão.

Para começar, é preciso refletir o que torna ou não um país relevante geopoliticamente, e a importância desta relevância. A começar pela importância, é preciso fazer algumas definições filosóficas acerca do viver humano e as conseqüências sociais disto. Primeiro, o ser humano vive para realizar seus desejos, e todo desejo tende a ser construído através das relações de poder. Isto significa que todo desejo humano é tende a alcançado através do poder que ele exerce em outros seres humanos. Esta definição é importante para explicar o porquê um país tem a necessidade de ser relevante globalmente. Segundo, é preciso que construir um processo de continuidade para a realização dos desejos. Afinal, de nada adianta realizar um desejo, sem que este desejo dê condições de que se continue a realizar os desejos, e isto é feito também através da construção das relações de poder. Portanto, munidos destas afirmações, é possível refletir acerca da importância da relevância de um país.

Devido a cada vez maior capacidade tecnológica do nosso mundo, os países estão cada vez mais globalizados. Isto significa duas coisas: a primeira é que a noção de desejo é globalizada através do fluxo de informações, a segunda é que, para um país realizar a noção de desejo uma vez globalizada, ele precisa submeter os outros países à sua agenda de realização de desejos, ou seja, ele precisa estabelecer relações de poder benéficas a ele. Desta forma, é possível visualizar um país que, ao conseguir dar para a população aquilo que ela imagina ser a felicidade, consegue manter seu estado estabilizado, com as pessoas pagando impostos, para que ele mantenha pressão nos outros estados menores para que estes sirvam a ele. Estes outros estados, por sua vez, sempre enfrentam problemas de instabilidade, como corrupção, violência ou revoltas, mas por não ter condições de atender o ideal de felicidade das pessoas, nunca consegue se estabilizar.

Visando este cenário, torna-se claro que é necessário tornar um país relevante. Portanto, um dos pontos de reflexão já foi refletido. O segundo é acerca do que torna um país relevante geopoliticamente. Para começar, é necessário que o país tenha condições de produzir algo. No entanto, surge a seguinte pergunta: quem arca com a responsabilidade de produção? No ponto de vista do liberalismo, a resposta é a iniciativa privada. Mas o Devir tem duas objeções acerca desta resposta. A primeira é quanto ao desenvolvimento da produção, quem assume tais riscos? A segunda é acerca do poder da iniciativa privada: como calibrar algo que inevitavelmente se tornará maior que estados?

Assumir o risco de desenvolver um processo de produção é algo muito sério. Isto porque é preciso supor que toda produção efetiva já deve ter sido apropriada por algum país ou empresa, de tal modo que se um país precisar iniciar um processo de produção, é porque ele tem a responsabilidade de inovar em algum aspecto para ganhar algum tipo de relevância. No entanto, todo processo de inovação implica em investimentos que não necessariamente seja garantido retorno, pois, afinal, se há a garantia de retorno, é certo que algum agente já se apropriou daquela forma de produção para realizar seu poder. Sendo assim, a pergunta realmente válida a ser feita aqui e levando em consideração todo este contexto é: quem vai assumir o risco de produção?

No entendimento do Devir, não é possível que nenhum agente privado assuma este risco de produção. Isto porque, o bem que o desenvolvimento de um processo de produção traz necessariamente é global, portanto, deve ser global também a distribuição dos riscos, coisa que claramente não acontecerá se a iniciativa for privada. Aqui surge a seguinte pergunta: por que o bem do desenvolvimento de um processo de produção necessariamente é global? É possível supor que o agente que possui um processo de produção irá guardar o segredo de como produzi-lo. No entanto, é preciso levar em consideração que, uma vez que determinado conhecimento científico tenha sido produzido por um agente, a exibição daquele resultado, por mais indireta que seja a forma, vai dar pistas acerca do processo de produção, mesmo que seja por espionagem ou engenharia reversa.

Assim sendo, para o Devir, é claro que quem deve tomar a responsabilidade para iniciar um processo de produção é o estado. Afinal, não é um agente por interesses egoístas que irá assumir o risco de buscar um novo processo de produção, mas sim um agente que vê como única alternativa de sobrevivência sacrificar a vida que há em si para atingir seu objetivo. Neste caso, quem irá se sacrificar é o próprio estado, e as pessoas que compõe aquele estado, com o objetivo de trazer algo de benéfico para sua nação, que irá se perpetuar por algumas gerações. Afinal, se o estado não fizer isto, certamente ele não alcançará nenhum tipo de relevância geopolítica. Sem esta relevância, ele estará condenado a uma população infeliz, que não realiza aquilo que ela entende como desejo, por conseqüência, sempre estará imersa em um clima de corrupção, violência e rebeldia.

Finalizadas estas duas reflexões acerca da relevância do mercado em detrimento do mercado, prossigamos refletindo quanto ao poder da iniciativa privada. É possível elogiar a iniciativa privada como aquela que tem excelente resolução em termos de engenharia para um problema. Ou seja, ela consegue articular tudo o que se conhece para resolver um problema em específico. No entanto, em detrimento disto, ela peca na resolução de problemas em termos científicos, ou seja, dado que um problema existe, mas não existe conhecimento para atacá-lo, é preciso desenvolver tal conhecimento. Isto é, certamente, um papel adequado para o estado por motivos anteriormente já citados.

No entanto, ainda é possível argumentar que os agentes do mercado vão se articular para desenvolver a ciência necessária. Aqui surge o seguinte questionamento: o que diferencia a articulação de agentes de mercado de um poder alternativo ao do estado? Afinal, se os agentes do mercado se articulam, existem duas implicações possíveis: ou existe um interesse maior que o lucro, ou existe a tendência ao monopólio. Se no primeiro caso, que interesse seria este e por que este interesse está recaindo sobre agentes do mercado, não sobre agentes do estado? Isto seria uma construção correta do poder? No caso do segundo: não é o monopólio aquilo que destrói a função social do mercado? Afinal, o principal argumento para adoção do mercado como principal entidade de calibração social é que ele fará com que seus agentes sociais, através da competição, encontrem soluções ótimas.

Além disto, é preciso observar algo extremamente impactante quando observamos a iniciativa privada frente à globalização: as organizações privadas se tornam maiores que estados. Ora, se o estado democrático é construído como forma de equilibrar o poder, através do voto, como então equilibrar o poder destas organizações privadas? De certo modo, se a iniciativa privada é maior que estados, é possível supor um cenário onde não os estados, mas sim as iniciativas privadas compitam entre si para saber quem detém mais poder. Pelo princípio liberal, isto parece benéfico. Afinal, empresas competindo por um mesmo competidor vão apresentar melhores soluções. No entanto, ao lembrar a falta de um estado forte o suficiente para impedir manobras maliciosas, é possível supor que, no final das contas, o consumidor será sim lesado. Não somente isto, mas também qualquer estado que se impor para diminuir o lucro de uma empresa internacional em benefícios da sua própria população sofrerá as devidas retaliações.

Portanto, é preciso perceber o seguinte: as necessidades políticas naturalmente encontraram uma solução que equilibra o poder do mercado, dos estados e da população com pesos e contramedidas. Afinal, o mercado serve à população através do dinheiro, mas é regulado pelo estado. O estado serve a população através do voto, mas é limitado pelo financiamento das campanhas. Já a população se serve de ambos, mas também controla a ambos através do voto e do dinheiro. Portanto, defender que o mercado artificialmente deva ser maior que o estado somente supondo que o mercado terá condições de equilibrar todas as características da sociedade ao longo do tempo é, primeiro, arriscar uma população à uma hipótese que pode não se adequar a aquela realidade e, segundo, desvalorizar gradualmente o valor do voto em detrimento ao valor do dinheiro. Em última instância, é fazer uma sociedade que pense mais no consumo que na organização e produção, visto que não é possível inovar sem investimentos em ciência e sacrifício por sua nação.

Assim o Devir Social finaliza este texto, apontando que a solução para nosso período histórico não é diminuir o estado de maneira cega e ignorante, mas sim prezar pelo aperfeiçoamento dos métodos democráticos. O Devir espera que, através disto, a responsabilidade da produção social seja mais distribuída entre as pessoas, de modo que cada uma delas tome consciência de seu próprio contexto e da sua própria existência ao ponto de haver uma reconfiguração acerca daquilo que elas consideram realização de poder. Atualmente, realização de poder é ter padrão de consumo alto. O Devir Social um dia espera que realização de poder seja tomar decisões de alto impacto na sua sociedade, de modo a torná-la mais viva eficaz e menos dependente de modelos rígidos e imprecisos. Sem o aperfeiçoamento dos métodos democráticos, o Devir Social considera que a realidade não se alternará, independente de que se for o estado ou o mercado que esteja grande.

Link no blog: https://www.facebook.com/DevirSocial/posts/840266456174378

sábado, 2 de junho de 2018

Princípios adicionais aos conselhos sociais

Bem vindos a mais uma postagem do Devir Social. O texto de hoje traz alguns princípios  adicionais ao modelo de conselho social descrito anteriormente neste blog, para que, através deles, a percepção acerca de como os conselhos sociais devem funcionar, segundo o Devir Social, seja aprimorada. Estes princípios são construídos através daquilo que o Devir Social entende como uma relação de poder saudável e está ligado intimamente com todos os outros dispositivos de uso de poder já reconhecidos ou descritos neste blog. O modelo pode ser visto no seguinte link: http://devirsocial.blogspot.com/2016/12/devir-e-os-conselhos-sociais.html Sem mais delongas, vamos à eles.

- Princípio da sensibilização social:
Para manter uma sociedade viva, vários setores sociais são construídos. Alguns lidam com a saúde, outros com segurança, outros com alimentação, assim por diante. No entanto, o que fazer quando algum destes setores começam a falhar com um ou outro indivíduo, levando-o ao sofrimento? Certamente ele buscará formas de mudar esta situação. Uma destas formas é buscar a justiça para ser ressarcido do seu prejuízo, no entanto, isto pode não ser o suficiente para justificar o sofrimento que aquilo trouxe a ele. Deste modo, é possível supor que ele irá buscar maneiras de alterar a forma como aquele setor funciona, seja negando-o, buscando formas de nunca mais precisar se precisar dele, seja trabalhando como voluntário ou fazendo doações , ou, para o Devir Social, participando do conselho social que atende à aquele setor.

Portanto, para o Devir Social, o princípio da sensibilização social diz que se existe uma área da sociedade está funcionando mal e as pessoas não encontrarem outra alternativa senão a de participar do conselho social, então este conselho deve ser capaz de suportar aquela demanda. É desta forma que o Devir Social garante que todo aquele que tem algo para contribuir com aquilo que é público encontrará seu espaço, através do conselho. Assim, espera-se que cada pessoa que tem dentro de si o sentimento de ajudar ao próximo ou seja sensibilizada a tal coisa por algum ato de injustiça ou acidente encontre um meio verdadeiramente legitimo e direto de fazê-lo, proporcional à seu interesse e sua capacidade política e integrado à visão democrática de distribuição do poder político.

- Princípio da liderança de informação:
Uma vez que os conselhos comecem a funcionar, é possível esperar um bom nível de simetria na distribuição de informações, afinal, tudo feito de forma oficial no conselho será público. No entanto, nenhum sistema é perfeito, por isso é impossível garantir a distribuição plena de informação. Seria possível fazer muita coisa para integrar este fato ao desenvolvimento dos próprios conselhos, no entanto, o Devir Social entende que é suficiente estabelecer que é moral e justo que cada conselheiro lute pela sua aquisição de informação, e use aquela informação como bem entender. Fazemos isto através do princípio da liderança de informação, que diz que uma das recompensas por quem se esforça em mais participar do conselho é ter a liderança acerca da aquisição de conhecimento de uma informação ou outra.

Isto, a princípio, pode parecer estranho, pois parece que alguma informação importante pode ficar retida entre os conselheiros. No entanto, é preciso lembrar que conselheiros são eleitos através de votos e por isso existe uma responsabilidade de dar respostas à aqueles que votaram neles. Além disto, todos os conselheiros atuam sobre uma mesma realidade geopolítica, portanto, é possível presumir que se um dos conselheiros obtiver uma informação muito boa a ponto de privilegiá-lo em algum aspecto, logo os outros perceberam e buscarão por esta informação também. Portanto, fazer uso com sabedoria destas vantagens que o conselho pode trazer para cada conselheiro faz parte da dinâmica de poder trazida pela política. Embora possa parecer, isto não se configurará como corrupção, uma vez que o princípio da liderança de informação garante que isto é algo moral dentro do contexto dos conselhos, afinal, este princípio anuncia claramente que todos podem fazê-lo.

- Princípio da não autonomia financeira:
Imagina-se o seguinte cenário: um grupo de pessoas consegue, através da lei, o poder de taxar outras pessoas e ficar com os impostos. Estes impostos são destinados a um propósito nobre, por isso mesmo a lei permitiu que eles fossem autorizados, e também as pessoas que participam deste processo são todas eleitas por algum processo democrático, em especial o processo de votação estabelecido para os conselhos sociais, pelo Devir Social. Ora, algum desavisado poderia apontar para isto como algo bastante frutífero, uma vez que já sabemos que, de acordo com as propriedades já descritas no modelo dos conselhos de autocalibragem, poder-se-ia confiar que a possibilidade de algum sistema corrupto se instalar seria baixa.

No entanto, isto não é verdade. Afinal, nada garante que o recurso vindo através da taxação ao próximo seja realmente efetivado ao seu propósito, mesmo que exista um sistema de calibragem, e que os agentes que participam das decisões não entrem em acordo para manter assim. Portanto, este princípio é apenas um aviso de que este formato de conselho social não tem potencial de substituir o atual sistema legislativo ou executivo, apenas de co-participar com eles da construção democrática. Assim sendo, todo recurso vindo do conselho terá de ser negociado com o legislativo, pois ele é resultante de uma complexa estrutura de relação de poderes. No entanto, o Devir entende que existirá força nos conselhos para fazer isto,afinal, ele é construído através do voto, o mesmo voto que define o legislativo e executivo e, portanto, tem um imenso poder político.

- Princípio da não automação dos conselhos:
Todo processo deliberativo é único. Afinal, a cada deliberação há seu próprio contexto de interesses, situações, agentes e conseqüências. Um conselho, fundamentalmente, é construído para trazer vida à processos muitas vezes burocráticos e para que, através da participação social, a democracia responda com mais velocidade, sensibilidade e precisão à sua própria realidade. Portanto, este princípio diz que o trabalho de um conselheiro nunca deve ser repetitivo ou burocrático. Por outro lado, seu trabalho deve ser deliberar emprestando o componente humano à situações construídas através de mecanismos que possam ser distantes daquela realidade e muitas vezes mecânicos.

Obviamente, todo conselheiro deve saber que ele precisará efetuar algum trabalho durante seu processos deliberativo. Este trabalho será feito através de estudos, pesquisas, fiscalizações, estabelecimento de contatos e dentre diversos outros. Porém, não é atribuição do conselheiro fazer trabalho repetitivo ou decisões repetitivas. Portanto, todo trabalho ou decisão que se mostre repetitiva dentro de um conselho deve, idealmente, ser transferido para alguma instancia de poder público competente ou, se não houver, criá-lo. Como mencionado anteriormente, o Devir Social entende que os responsáveis pelo dinheiro são o legislativo, no entanto, através da pressão vinda da necessidade dos conselheiros de não ter seu tempo tomado por processos repetitivos, é esperado que o conselho consiga forçar que o legislativo libere, através da lei, os recursos necessários para criar cargos públicos para lidar com tais situações. Assim, terá ele a função de fiscalizar tais cargos, uma vez que, não trazendo ela retorno ao legislativo, é possível também que haja corte de investimento.

- Princípio da continuidade do cargo
Nos sistemas democráticos, os cargos eletivos costumam ter um limite de reeleição de um indivíduo. Isto funciona como uma tentativa de fazer com que o poder não se concentre nas mãos de pessoas, mas sim em ideias. Afinal, se uma pessoa é eleita a um cargo, em uma democracia, ela representa um conjunto de pessoas que se unem em torno de ideias, e assume-se que qualquer uma destas outras pessoas também tem tantas condições quanto ela para se eleger e representar. No entanto, este mesmo princípio não vale para os conselhos sociais, uma vez que, ao contrário dos poderes tradicionais, onde quem está no cargo se beneficia pela estrutura fixa de poder, em um conselho é possível pressupor que isto não acontecerá devido ao mecanismo de calibragem de poder.

Além disto, é preciso lembrar que, como dito anteriormente, espera-se que a participação do conselho seja voluntária, de tal modo que quem faça parte do conselho, o faça devido ao princípio da sensibilização. Assim sendo, é preciso verificar que existem custos para participar de um conselho, como, por exemplo, aprender a dinâmica, construir as relações ou  conhecer as leis, e este custo necessariamente é pago por um indivíduo e não pode ser transferível. Portanto, além de não existir motivos para impor limites de participação de um conselho, além disto, adicionaria um entrave a quem deseja participar de um conselho por alguma sensibilização específica, pessoal e muitas vezes intransferível, como também um custo cada vez que fosse necessário tirar uma pessoa que quer participar para adicionar alguém novo só para suprir a cadeira já conquistada.

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